domingo, 30 de março de 2014

Descobri que falo 'brasileiro'. Por Juliana Doretto

Dizem as boas línguas que brasileiros e portugueses falamos a mesma língua. Ah, caro leitor, essa frase está tão longe da realidade quanto o Brasil está distante de Portugal.
Sim, conversamos e nos entendemos; escrevemos e nos entendemos – uns 90%, é verdade, mas há compreensão. Só que não se trata da mesma linguagem. Quer ver? Aqui, em Portugal, eles dizem que falamos “brasileiro”. No Brasil, dizemos que falamos português e que os lusos manejam o “português de Portugal”. Entre essas duas línguas há um pote de gostosuras -- mal-entendidos, usos curiosos, duplos significados --, tão deliciosas quanto a moqueca nossa e o bacalhau deles.
Outro dia, compro uma revista, abro, e está lá, em letras garrafais: “Roupas para quem tem rabo pequeno”. Na página seguinte, vêm os modelitos para quem tem “rabo grande”. E, na TV, passa toda hora a propaganda da fralda que deixa o “rabinho do bebê” sequinho... Uma amiga minha, outro dia, estava com o celular no silencioso, no bolso, quando diz: “Ai, estou com o rabo a tremer!”. Aí, no Carnaval, ligo na RTP, o canal público daqui, e vem a reportagem: “Em Cabanas de Viriato, reina a dança dos cus”. Com uma senhora de 70 anos “a falar”: “Já, já dancei... já bati bem com o cu”. É cada susto que eu levo...
Essa minha amiga, aliás, é mestre em me fazer ter sobressaltos. Já me fez quase ligar para o serviço de emergência quando me contou que sua “botija” havia estourado durante a noite, e a cama estava molhada. Como saberia eu que ela falava de uma bolsa de água quente que lhe aquecia os pés no frio lisboeta? Também me contou que teve de chamar ajuda para enfrentar uma “osga”. Imaginando algo feroz e assustador, apoiei seu ato de pouca bravura, até saber que o bicho em questão era uma inofensiva lagartixa.
Descobri ainda que as pessoas aqui metem o carro na vaga, metem o livro na mala, metem em todo o lugar, e fica tudo bem. Sei agora que gosto de “mocho” (coruja); que tenho um “chapéu de chuva” (guarda-chuva); que na serra da Estrela há “nevão” (nevasca); que travesseiro é “almofada”, e almofada é almofada mesmo; que “putos” e “pitas” são algo como “miúdos” ou “miúdas”, ou garotos e garotas. Inclusivamente – muito usado por aqui –, pode-se chamar uma menina de “rapariga” sem que ela se ofenda com o termo de uso antigo.
Aprendi que não apenas existe mas é extremamente popular o termo “mais pequeno”; que “engraçado” é interessante, e quem é engraçado na verdade “tem piada”; que a plataforma do metrô é o “cais do metro”, que fresco é “gelado”; que “gelado” é sorvete e que ninguém chupa gelado por aqui, porque é feio. Come-se. Come-se um gelado de “marabunta”, por exemplo. Não pense bobagem: é de flocos.
Mas nada é tão difícil para mim quanto "o tratamento Pelé”, como o chamo. Assim como o Edson trata a si mesmo pela terceira pessoa, é extremamente comum aqui que as pessoas me chamem de “Juliana” quando estão falando diretamente comigo. É um tratamento intermediário, nem formal nem informal. “E a Juliana vai comer o quê?”, perguntaram-me. A primeira vez, é claro, olhei para trás, procurando uma Juliana. Mas havia somente eu na sala. Isso vem também por escrito. Em um e-mail enviado para mim, é comum ler a frase: “Como a Juliana me disse na última mensagem...”
Tem toda a parte dos xingamentos, palavrões e outros que tais, mas isso, por força da minha polidez, eu guardo para os meus amigos “tugas”, numa mesa de uma “tasca” qualquer. Ou um restaurante pequeno e barato. Enquanto “tomamos um copo” e para quem eu distribuo um “grande beijinho”, porque é assim que faz com aqueles por quem se tem estima. Mas, para dizer que não avisei, sugiro apenas que não comprem um broche, mas sim uma “pregadeira”. Soará muito melhor, vá por mim...

Originalmente publicado em: http://epoca.globo.com/colunas-e-blogs/ruth-de-aquino/noticia/2014/03/descobri-que-bfalo-brasileirob-por-juliana-doretto.html

domingo, 23 de março de 2014

Da poesia

Na passada Sexta-feira assinalou-se o Dia Mundial da Poesia. Através de uma notícia na RTP fiquei a saber que a poesia irá sair do programa do ensino secundário. Aparentemente desistiu-se desta arte. Os portugueses não estão sensibilizados para os versos, para lê-los ou escrevê-los. Mas eu creio que a rima (embora não seja obrigatório a poesia rimar), está no ADN dos portugueses, vislumbrando-se em muito da nossa cultura popular, nos provérbios, nas quadras dos santos populares, nas canções, e até nas adivinhas. Por isso, acredito que a poesia não vai desaparecer, é o nosso fado.
No meu tempo de estudante gostei de conhecer as obras de Camões e de Pessoa. Aprendi a encarar os poemas como quebra-cabeças, mensagens escritas em código para nós decifrarmos, através da identificação das figuras de estilo utilizadas, ou da associação das vicissitudes da vida dos autores ao que escreviam.
Também cheguei a ser autora de originais. Estava no nono ano e havia a moda de os rapazes escreverem rap e as raparigas poemas. Na altura eu tinha uma paixoneta por um colega meu e então fazia-lhe declarações de amor em código através dos meus poemas.
Gostaria que o ensino da poesia se mantivesse. É um desafio mental e emocional, uma forma de expressão que ultrapassa o papel e é a base para outras artes, por exemplo, a base dos letristas das nossas canções favoritas, como o Pedro Abrunhosa ou até mesmo o Vasco Palmeirim.

Talvez tenha sido o estigma da tristeza e desventura que fechou os corações dos portugueses à poesia, mas há poemas que nos fazem sorrir, sonhar e que nos inspiram, como “Grândola, Vila Morena”, que regressou aos lábios dos portugueses.

domingo, 16 de março de 2014

Da Educação I

Na passada Sexta-feira, a minha irmã e cunhado foram visitar vários colégios para a minha sobrinha. Como pais, querem proporcionar à Laura a melhor formação académica que lhes é possível, e por isso estão a avaliar várias hipóteses.
Fiquei contente por saber que há vários colégios a incluir desde cedo programas de educação física, línguas e música. Para além de saberem ler, escrever e contar, é importante que as crianças desenvolvam as suas capacidades motoras e a sua sensibilidade através das artes.
É uma enorme responsabilidade estar envolvido na formação de um ser humano. Durante a gravidez, a minha irmã leu vários livros sobre bebés e como os pais podem ajudá-los no seu crescimento. Não querendo, minimizar o seu mérito, no Natal passado ofereci à minha irmã “O Elemento”, de Ken Robinson. Aconselho todos os pais tomarem conhecimento do ponto de vista disruptivo de Robinson acerca da formação académica: http://www.ted.com/talks/ken_robinson_says_schools_kill_creativity
Na minha vida profissional, já leccionei no ensino primário e no ensino superior, e embora, diferentes públicos ditem diferentes métodos, em todos tentei fomentar a criatividade. No ensino superior, o meu grande objetivo não foi criar esponjas de conhecimento que absorvessem todos os conceitos teóricos (que transmiti, pois são a base), e que repetissem os mesmos trabalhos académicos de anos anteriores (o que promove o facilitismo do plágio), mas desafiar os estudantes a criar algo original. Foi muito gratificante ver os meus alunos apresentarem propostas para ações promocionais, organizarem uma conferência e concretizarem ações de angariação de fundos. E mais importante do que a minha realização profissional, foi testemunhar a satisfação pessoal dessas pessoas.
Porque a vida é feita de experiências, de tentativas e erros, há que dar espaço à autonomia do pensamento e à criatividade. E há que ter em conta que o tempo que nós passamos na nossa formação académica, coincide com o tempo em que a nossa inteligência (no sentido mais lato, i.e. social, emocional, racional) se desenvolve e nos definimos enquanto pessoas.
Pela minha parte, tento fomentar o lado direito do cérebro da Laura oferendo-lhe lápis de colorir e instrumentos musicais, contando-lhe histórias e participando nos seus momentos de “faz de conta”. Implica algum chinfrim e muita desarrumação, mas a Fénix não renasceu do caos das chamas?


segunda-feira, 10 de março de 2014

Da paciência

A paciência é um virtude e não há melhor lugar para aperfeicoá-la do que Lisboa. Quem mora fora da cidade sabe como são vitais aqueles minutos que saímos mais cedo de casa, caso contrário apanhamos um trânsito infernal para entrar em Lisboa. Mais do que infernal, eu diria anedótico, pois há dias em que seria possível fazer uma corrida entre um carro e um caracol que este chegaria à meta primeiro e ainda fumaria um cigarro enquanto esperava pelo carro.
Quando trabalhava em Lisboa, costumava ir de transportes públicos, neste caso o exercício de paciência é outro, designadamente, andar como sardinha em lata. Por vezes, vamos tão juntinhos que dá para adivinhar a marca do aftershave do senhor da frente ou saber que a jovem do lado está chateada com o namorado porque o ouvimos implorar perdão pelo telefone. E na volta para casa, não nos safamos do trânsito. Chega a demorar tanto tempo que já apanhei um autocarro com uma senhora à minha frente que descascou e comeu um saco de camarões cozidos até chegarmos à Bobadela.
Contudo, quando somos nós ao volante não há muito que possamos fazer. Já houve alturas em que me apetecia fazer como nos filmes e abandonar o carro para ir a pé. Oiço música, canto, encanto ou assusto o vizinho do lado com as minhas figuras; penso nos mistérios da vida (embora nunca chegue a conclusão nenhuma); como um lanchinho, porque mulher prevenida vale por duas; por vezes, trabalho, porque as ideias surgem assim, por entre suspiros, quando deixo o cérebro respirar; e nunca uso o telemóvel, senhor polícia!
E falando em camarões, Lisboa tem excelentes restaurantes, tão bons que atraem multidões. Em resultado, esperamos para conseguir mesa, depois temos de esperar para sermos atendidos e ainda, esperar até a comida ficar pronta. Então, comem-se os aperitivos e põe-se a conversa em dia, interpolada por uns brindes à malta. Em breve, esgotamos os temas mais interessantes e já só mexemos o gelo no copo com a palhinha. O bom é que quando o prato chega, toda a gente está com fome e pensa mais é em aconchegar o estômago. Pede-se mais um jarro de sangria, fala-se sobre como a comida é boa e para onde vamos a seguir.
Outra situação que me ajuda na mestria da arte da paciência são as filas da Segurança Social ou do Centro de Emprego. Infelizmente, tenho-me deparado por diversas vezes com esta situação. Lá em baixo no Algarve, por norma, se formos a uma cidade menor das redondezas, conseguimos apanhar menos pessoas na fila da Segurança Social do que numa cidade maior, como a minha Portimão. Tentei aplicar aqui o mesmo princípio e ir a Loures ao invés de Lisboa. Pois, acontece que Loures é uma Portimão e uma Faro juntas, suspeito. Já tentei chegar meia hora antes da abertura da agência e, mesmo assim, nunca consigo menos de 50 pessoas à minha frente. Antes gastava toda a minha bateria no Facebook ou a jogar à paciência, mas agora já aprendi a contornar a situação. Faço o mesmo no Centro de Emprego, tiro a senha e vou à minha vida. Até agora tenho conseguido sempre adiantar outras tarefas, almoçar em casa e ainda chegar a tempo de ser atendida. O pior é mesmo a espera pelo emprego. Foi menos longa quando terminei a Licenciatura e tinha pouca experiência, agora tenho formação e experiência a mais e sou demasiado velha para estar atrás de um balcão ou servir às mesas. Este é o maior teste à minha paciência.

Esta semana também vocês, meus queridos leitores, praticaram a paciência, pois tiveram de esperar um dia a mais pelo meu post. Espero que tenha valido a pena, porque o lado positivo de treiná-la é que a paciência não é um fim, mas um caminho, pois como dizem “The best things in life are worth waiting for ...”

domingo, 2 de março de 2014

A sala ideal para a minha idade. Por Juliana Doretto

Prestes a fazer 33 anos, estou eu a ler matérias sobre decoração – adoro isso... – quando me deparo quando um texto que dizia algo como: “Veja como é a sala decorada para a sua idade”. Eis que na faixa dos 30 anos estava lá um belo exemplo de cômodo montado para um casal morando junto há poucos anos e já com um filho pequeno. Falava da necessidade de ter espaço para os brinquedos, de ter móveis resistentes, de se preocupar mais com a segurança das crianças do que com o design dos móveis.
Acontece que o texto não trazia uma segunda ou uma terceira opção: peças que podem ser úteis para os que estão – ou querem ser sempre – solteiros, para os casais sem filhos, para os que moram com amigos. É claro que a matéria ficaria tão complexa que talvez fosse necessário até mudar o conteúdo. Não seriam casas para as idades, mas sim para diferentes perfis. E mesmo assim, sabemos, faltariam outros tantos. Mas já seria algo mais honesto e real.
Certa parte do jornalismo tende a montar o mundo em caixinhas, como se todos nós tivéssemos de nos esforçar para nelas caber: “Como atingir o corpo perfeito”; “Como se livrar do estresse”; “Empreendedores contam a receita de seu sucesso”; “Veja o que deve usar para arrasar no próximo verão”; “Salto alto levanta a autoestima”... Se você tem 33 anos, é divorciada, sem filhos, mora num apartamento já mobiliado, não tem paciência para a academia de ginástica, acha que se não estiver estressada está trabalhando de menos, é bolsista, não consegue vestir certas peças “que todo mundo está usando”, e não gosta de salto alto, faz o quê?
O jornalismo funciona como um dos normatizadores da sociedade: as reportagens e colunas que lemos tendem a avaliar o que é aceitável ou não – e não somente na administração pública e na convivência social mas também em nossa vida pessoal. Há uma linha do que é “normal” ou “esperado”, que guia a escolha do que é reportável ou não.
Mas quantas mulheres têm a barriga “seca”? O que é, afinal, atingir o sucesso profissional? O que é estar na moda? Se tudo isso fosse apenas uma invenção do jornalismo, seria mais fácil driblar os mandamentos. Acontece que se trata de um círculo: o jornalismo constrói esses parâmetros baseado no que se passa na sociedade – e vice-versa. A sociedade espera algo para uma mulher da minha idade, e o jornalismo repete – e alimenta – essas expectativas.
Então, é isso, acabou o jogo? Penso que não. Como jornalistas, há que pensar que o mundo nem sempre cabe em quadradinhos predeterminados – é preciso explorar essa ideia, cada vez mais, em vez de construir manuais de comportamento. Como leitores, há que criticar textos desse tipo, mas também refletir sobre os parâmetros pelos quais queremos conduzir nossas vidas: o que é normal para nós, o que não é? O que queremos que de fato nos aconteça?
Minha sala atual tem um sofá, uma tevê pequena, alguns livros e CDs – os que couberam na mala. Não há nenhum plano de engravidar nos próximos anos e não tenho dinheiro suficiente para renovar o guarda-roupa. Não é o que eu esperava viver aos 33, quando eu tinha 23. Mas é o que aconteceu – pelas minhas escolhas; algumas correram bem; outras não. Nem sempre fico contente com isso, mas ler matérias sobre como deveria ser minha sala não me ajuda a entender que a vida é um caminho torto e sem predestinações. Por outro lado, hoje vejo um pedacinho do Tejo da minha janela, e isso é algo que eu jamais esperei acontecer quando eu tivesse 33 anos.
*O texto original foi publicado em: http://epoca.globo.com/colunas-e-blogs/ruth-de-aquino/noticia/2014/03/bsala-idealb-para-b-minha-idadeb-por-juliana-doretto.html